Por acaso eu estava vendo algumas indicações de livros no
Youtube e encontro uma série de vídeos intitulados “Livro de Cabeceira” do
canal Esquina Cultural em que são convidados vários escritores, leitores ou
críticos literários para indicarem grandes livros de suas vidas. Acabei vendo
todos os vídeos e me interessei pela indicação de Badenheim 1939, primeiro
porque eu nunca tinha ouvido falar desse livro e muito menos de seu escritor, e
segundo porque o autor conseguiu fugir de um campo de concentração quando ainda
era criança e muito tempo depois escreveu esse livro ficcional, mas que integra
relatos biográficos.
Já vou adiantar que o livro é super curto e a escrita pode
agradar bastante ou não o leitor. A escrita é bem “dura e seca”, isto é, os
períodos são super curtos, não existe muito a utilização de vários adjetivos
para construir uma frase, e o autor descreve quase que cruamente fatos
objetivos e acontecimentos diretos. Sendo sincero, não é o tipo de escrita que
me agrada, porém a linguagem que ele usa facilita muito a leitura, pois você
não precisa tentar decifrar o que é escrito, você lê rapidamente os pequenos
capítulos e consegue construir uma ideia bastante sólida sobre a cidade, sobre
as personagens da história, entre outras coisas. Mas vamos para o livro.
A cidade de Badenheim fica na Áustria e toda a história se
passa nela com a chegada da primavera, quando a cidade atrai vários turistas por
um tipo de festival de artes, tais como músicas ou pessoas famosas que são convidadas
para recitarem poemas e outros vários atrativos locais como lojas, gastronomia
etc. Dessa forma, o autor faz um panorama sobre a cidade, sobre as pessoas que
estão chegando à cidade e sobre seus moradores que aguardam esperançosamente os
turistas para que seus comércios melhorem e a cidade ganhe vida. Mas é aqui que
fica o principal mistério do livro: a cidade parece que está num dia comum para
o turismo com a confeitaria da cidade cheia de pessoas comprando, as
prostitutas andando pelas ruas com roupas leves, pessoas nas janelas tomando
conta da vida dos outros, enfim, uma cidade como qualquer outra; até que a
Divisão Sanitária, um órgão oficial do governo, começa a interditar a cidade,
ou seja, as pessoas que foram lá a passeio ou que moram em Badenheim ficam
presas dentro da cidade e são obrigadas a se identificarem numa repartição da
Divisão Sanitária caso sejam judias, e assim começa a melhor parte do livro e
eu vou explicar o porquê...
Nós já sabemos o que vai acontecer no futuro, afinal o livro é
uma história ficcional sobre o que acontece antes do Holocausto, só que as
personagens NÃO SABEM DISSO e é aí que começa aquela angústia e ansiedade do
leitor porque as pessoas judias ao se identificarem na Divisão Sanitária são
informadas que elas serão transferidas para a Polônia por trem. Quem lê já sabe
que essas pessoas serão mandadas para campos de concentração e exterminadas,
mas a todo tempo os judeus conjecturam sobre o que farão quando chegarem à Polônia
e eles têm uma percepção muito positiva disso. Os músicos convidados para o
festival da cidade começam a ensaiar cada vez mais para fazerem fama lá; outros
ficam pensando na viagem e no lugar maravilhoso que deve ser o novo país e já
pensam em viagens com a esposa entre tantas outras coisas que a todo instante
nos dão uma sensação de horror, pois eles estão indo pra morte e todos esses
sonhos são em vão. Apesar de termos uma sensação de horror perante o futuro que
essas pessoas não sabem, ficamos impressionados com esse recurso narrativo que
o autor utiliza. Ele pega um conhecimento popular quase que universal sobre o
nazismo para fazer disso um mecanismo de contar a sua história que nos deixe
desconfortáveis. Sem dúvidas, essa é a maior qualidade do livro, mas há outra
que eu também quero comentar.
Primeiramente, a história não é propriamente sobre o nazismo,
ela tangencia esse tema de uma forma quase que supersticiosa, mas que não está
no imaginário das personagens, por outro lado, o livro relata acontecimentos
anteriores que culminaram no terror de Estado embasado num antissemitismo já
existente na Europa. Há uma cena em que as pessoas começam a se perguntar o
porquê a cidade está cercada e os mantimentos ou água não chegam até lá, e uma
das pessoas brinca dizendo que existe uma “epidemia judaica”. SIM, as pessoas
estavam brincando com isso e caçoando dos judeus contando uma piada... e aqui
eu não preciso nem problematizar qual é o problema que vivemos sobre piadas
preconceituosas e suas implicações sociais né? Caso vocês tenham dúvidas, leiam
o livro e estudem sobre o Nazismo e saberão a consequência desses fatos
históricos. Mas voltando... Começa a se espalhar várias frases antissemitas
pelas personagens de uma forma jocosa e depois as afirmações começam a ficar
mais sérias quando falam abertamente que os Ostjuden
(judeus do leste europeu) devem ser enviados para fora da Áustria (mas é isso o
que acontece em 1939 em Badenheim de acordo com a ficção do livro, eles serão
exterminados). Então, a ficção acaba tratando de certos pontos anteriores ao
Holocausto, mas que evidenciam um pensamento vigente na época que embasava as
ações nazistas de genocídio, isto é, lendo o livro nós temos uma noção dos
acontecimentos precedentes à atrocidade humana que se intensifica de 1939 em
diante. Por isso que eu gostei do livro, porque temos uma prévia de como seria
o inferno e algumas pistas do que fizeram a gente chegar a ponto de matar
pessoas indistintamente.
Resumindo tudo, caso você esteja procurando um livro rebuscado
com uma escrita bastante elaborada e com recursos de linguagem experimentais,
não leia esse livro querendo isso. Leia-o para entender como que ocorreu o
terror de Estado de uma forma muito eficiente, chegando até a ser elogiada
pelos personagens, e também para que entenda que qualquer tipo de preconceito
pode gerar barbáries inimagináveis, tendo como exemplo o que aconteceu com a
“deportação” de judeus de Bandeheim em 1939 já que sabemos o fim dessa
história, mas que na época parecia algo bem natural.
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