O Pescoço da Girafa, de Judith Schalansky

Lançado em Março/2016 pela Cia das Letras, o livro de Judith Schalansky nos apresenta o ponto de vista da Professora Inge Lohmark. Esta é a primeira façanha da autora que, sendo relativamente jovem, consegue retratar tão bem uma professora de meia idade. Lohmark foi criada na Alemanha Oriental, e se adapta à vida conforme passam os anos na Alemanha reunificada.

Seu ponto de vista é sempre calcado na biologia e na genética, temas que leciona numa escola decadente em uma pequena cidade. Não se trata de mera reverência ao método científico. Usa a teoria da evolução como pedra filosófica fundamental. É assim que a personagem principal julga o mundo. 

Desde seu envelhecer como mulher, seu relacionamento, sua forma de lecionar - as descrições são feitas reproduzindo o processo de pensamneto de Inge. A forma desapaixonada e frustrada como relata sua relação com os alunos é em si uma crítica à educação. Mas embora se posicione, expõe sem medo que cada escolha implica consequencias. A escola tem que ser dura e disciplinadora? Então a criatividade se vai, e as pessoas ficam meio máquinas. O diretor quer uma escola mais humana e tolerante? Então os pequenos filhotes humanos se entregarão à preguiça.
"...permaneciam presos nas cadeiras e sonhavam com as férias que se aproximavam. Alguns pareciam distraídos e incapazes de raciocinar, outros fingiam submissão por conta dos boletins iminentes e empurravam a prova de biologia para a mesa da professora como gatos deixando ratos mortos no tapete da sala."
Nas primeira tribos humanas, deve ter se consolidado o valor da fêmea permanecer viva mesmo após se tornar infértil. As avós tinham importância, por contribuir com experiência no cuidado com a tribo. Nas sociedades modernas, no entanto, por vezes os filhos vão viver longe, ou decidem nem ter filhos, encerrando a transmissão genética. Inge Lohmark aborda esse tema de maneira implacável:
"De fato, não aprendiam aquilo. Ninguém lhes contava sobre a segunda transformação do corpo. O retrocesso sorrateiro. Atrofia do sistema reprodutor feminino. Interrupção das regras. Vagina seca. Carne murcha. A questão sempre foi o florescimento. Outono."
Wolfgang, o marido de Lohmark, cria avestruzes, e também é objeto de sua avaliação segundo a sua "ética" genética:
Cada macho tinha duas fêmeas. Esposa e concubina. Era sempre um trio. Avestruzes vivem a três. Os machos chocavam de noite, as fêmeas de dia. Como tudo podia ser simples.(...) Wolfgang já tivera duas fêmeas também. Duplo exito de incubação. Duas mulheres, tres filhos. Um quadrado entre dois círculos. Illona e ela. Porém, Inge não tinha nada a ver com essa mulher."
E a sociedade alemã, em franca mudança, mas que ainda encontrava nas escolas os órfãos das ideias de igualdade do antigo regime. As discussões com os outros membros do corpo docente são sempre divertidas. Quando ela comprova com fatos que seus discursos não funcionaram, passa a ser vilanizada como uma "americana capitalista". Ela não aceita o rótulo. Seu único senhor é a biologia. Considera (como eu) as ideologias políticas como teorias de segunda classe:
 - Tem razão, Inge. Um pouco de propaganda demais. Não precisaríamos disso de qualquer forma.  
Primeiro, os besouros de batata, que supostamente foram lançados por aviões norte-americanos para destruir as safras. Um fênigue por peça. Vidros de geleia cheio. E o milho que de repente foi plantado em todos os lugares e contaminou o solo com nitrogênio? (...) O que não dá certo, é ajustado. A teoria do Tudo segue a lei da mordaça. (...)
 - Está bem, senhora Lohmark. Sua genética americana capitalista venceu.
 - Eu não entendo: o que há de tão capitalista na genética?
Recomendo muito a leitura. Não é literatura fácil, e mostra que a autora ainda tem muito talento para nos mostrar. Foi uma reflexão importante para mim, pois à medida em que envelheço, tendo a buscar a utilidade prática de cada uma de minhas convicções. Talvez esteja sendo muito duro com minhas crenças. 

Aprendi com a professora Inge Lohmark que uma vida devotada à lógica completamente "instrumental" nos livra das ilusões - mas resulta que nos tornamos "des-iludidos"...

Judith Schalansky - mesma foto do livro, sem ilusões em seu olhar.

Comentários

  1. Achei bem interessante, Fábio. A expressão ''como gatos deixando ratos mortos no tapete da sala'' é surreal! Com livros assim, conhecemos o olhar técnico-racionalista, atrelado à metodologias, ideias fixas e controle. Criatividade é associada à preguiça; expansão do pensamento é tido como vácuo. Que loucura! rs.

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    1. Verdade, Mara. Este é o tom amargo presente nos "pensamentos" da personagem.

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