"To see the Summer Sky/Is Poetry, though never in a Book it lie/True Poems flee". (Ver o céu de verão é poesia/embora nunca em um livro seja encontrada/Os verdadeiros poemas voam" - tradução livre).
Reclusão e mistério são traços impactantes na vida e obra de Emily Dickinson (1830-1886), poeta norte-americana dona de um magnetismo único. Apesar da intensa produção, distribuída entre poemas, manuscritos e cartas, Emily nunca publicou qualquer livro em vida. Grande parte de sua obra atravessou brigas de família e rinhas universitárias para vir à tona, passando das mãos da irmã Lavinia Dickinson, rodopiando entre as memórias da cunhada Susan Gilbert Dickinson, chegando até Mabel Loomis Todd (esposa de um professor de Amherst e amante de Austin Dickinson, irmão de Emily) e Thomas Wentworth Higginson (editor), para depois desembocar em Amherst College e Harvard. A trama é complexa e digna do melhor enredo de intrigas palacianas - o que certamente teria desapontado profundamente Emily Dickinson, avessa a tumultos externos.
Todas essas personagens e um outro bocado, entre reais e fictícias, figuram no excelente livro "Nunca lhe apareci de branco" (original I Never Came To You In White, tradução de Waldéa Barcellos, editora Rocco, 1998, págs. 260), escrito pela biógrafa e pesquisadora Judith Farr. Firmada no modelo epistolar, a obra traz uma série de cartas trocadas entre Emily, suas amigas íntimas, familiares e pessoas que conviveram com a poeta.
Farr executou um seletivo trabalho de pesquisa, criando um romance em que Emily é carinhosamente desnudada: emoções, sensações, pensamentos secretos, convivência, angústias e sonhos aparecem na fala de uma adolescente precoce, extremamente inteligente e intensa em tudo o que sentia e escrevia, limitada pelas circunstâncias que sua época e costumes lhe impunham. No ano de 1847, Emily estudava no Colégio de Mount Holyoke, em South Hadley, Massachusetts, um internato feminino onde predominava a disciplina, rigidez e vigor religioso. Com saúde frágil e sem conseguir adaptar-se ao regime do colégio, Emily passou menos de dez meses no local, mas não saiu sem deixar um rastro inesquecível de genialidade e inveja - como já se pode esperar das relações humanas.
Aliando ficção e realidade, e tendo como cenário o tempo escolar de Emily, Judith Farr cria uma rota de descobertas para a/o leitora/leitor, revelando uma pequena-grande Dickinson de casca silenciosa e alma tumultuada pelo prazer de viver todos os pequenos detalhes do seu universo particular. As correspondências ficcionalizadas no romance sobrevoam a ordem cronológica, indo e voltando entre o tempo em que a poeta passou no internato e os sentimentos que deixou nos que ficaram após sua morte, como a invejosa professora Margareth Mann e o inabalável amigo e defensor Thomas Wentworth Higginson. É sedutor acompanhar os sonhos da poeta, a audácia com que enfrentou um ambiente opressor e sua paixão pela amiga Susan Gilbert.
Os amores de Emily Dickinson também estão cobertos por densa névoa, especulando-se que ela tenha
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Emily Dickinson aos 16 anos |
vivido um sentimento platônico por Susan e/ou por um amigo de seu pai, intelectual e mais velho que a poeta. Será que o coração de Emily chegou a pulsar por Susan, destinatária de inúmeras cartas afetivas e de cunho ardoroso, beirando ao erotismo, ou tudo não passou de lirismo amigável, repleto de floreios carinhosos típicos das cartas entre amigas? Judith Farr traça um caminho para a/o leitora/leitor, deixando-a/o ansiosa/o para saber um pouco mais sobre as inspirações da poeta-constelação.
Travessuras dos tempos de colégio misturam-se aos poemas; ficção e realidade tornam-se uma coisa só.
"Nunca lhe apareci de branco" é um livro encantador, instigante e vivo. Assim como Emily; doce Emily!
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Plus:
O Dickinson Eletronic Archive, arquivo digital lançado pela Harvard em parceria com a Amherst College, reúne todos os documentos (conhecidos) da poeta, entre manuscritos autografados, bilhetes, cartas, além de transcrições de seus poemas. Recomendo febrilmente a visita demorada.
nunca li nada de Emily, mas sempre tive vontade. Acredito que ler essa obra iria me instigar ainda mais nos textos dela... Excelente contribuição de tua parte, Marinha <3
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