Dose Dupla: Senhora - José de Alencar

Duas impressões diferentes para o mesmo livro 

Estamos estreando formalmente o Dose Dupla: duas pessoas comentando o mesmo livro em uma única publicação. O objetivo é proporcionar ao leitor dois pontos de vista diferentes de uma mesma leitura de uma só vez. Aqui no blog tivemos uma experiência parecida em nosso extinto projeto Leitura em Pauta

A obra

O livro da vez é Senhora de José de Alencar, edição do selo Penguin da Companhia das Letras, 334 páginas com introdução do professor Antonio Dimas e notas do próprio Alencar - 2013.
Não precisamos mencionar que Senhora é um clássico da literatura brasileira e leitura obrigatória em vestibulares de todo o Brasil, porém não lemos por obrigação e por isso vamos comentá-lo de forma mais informal, ressaltando pontos fortes com citações do romance. 

"Publicado em 1875, Senhora é uma história de abandono, vingança e reparação. Apaixonada por Fernando Seixas, frequentador dos altos círculos da corte, mas incapaz de sustentar sua vida de luxo, Aurélia é trocada por uma noiva com um dote de trinta conto de réis. Em uma reviravolta do destino, porém, acaba herdeira de uma grande fortuna e  de forma anônima e por uma quantia de cem contos de réis, consegue atrair Seixas de volta para si, apenas para humilhá-lo por seu caráter venal e submisso." 




Diálogos sobre Senhora de Alencar


Agradável, mas inverossímil: Aurélia, a "Senhora" do título, aos 18 anos, por ter passado pela situação de pobreza e riqueza, é estranhamente madura e planeja um ardiloso plano para "vingar-se" de seu único amor, ou como sugere o próprio autor, deixar-lhe patente a grandeza de seu amor por um supremo sacrifício do destino. A mesma consciência das situações, inteligência e sagacidade nos diálogos com Seixas (o amado) contradizem que caia numa vingança tão vil, ainda que fosse inconsciente desejo de viver a seu lado.

Da virgem dos lábios de mel para este livro, quase outro autor, com um senso apurado nos diálogos e um estilo (ainda) formal, mas menos pomposo. A agudeza de suas descrições deixa os ambientes naturais e passa aos costumes da vida social no Rio de Janeiro. É dai que surge a fraqueza do livro, em minha humilde opinião – Jose de Alencar é melhor ao descrever imagens do que hábitos.

Ainda assim, é o tipo de romance que gosto, pois nos agarra à história e pede leitura até sua conclusão. As descrições da força feminina e sedução de Aurélia – natural e sem esforço - mostram o desespero a que o marido fica exposto.

Trechos selecionados:

"Parecerá estranha esta paixão veemente, rica de heroica dedicação, que entretanto assiste calma, quase impassível, ao declínio do afeto com que lhe retribuía o homem amado, e se deixa abandonar, sem proferir um queixume, nem fazer um esforço para reter a ventura que foge.
Esse fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos, porque o coração, e ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral. Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos".

"Quando Aurélia liberara o casamento que veio a realizar, não se inspirou em um cálculo de vingança. Sua ideia, a que afagava e lhe sorria, era patentear a Seixas a imensidade da paixão, que ele não soubera compreender; sacrificando sua liberdade e todas as esperanças para unir-se a um homem a quem não amava e nem podia amar, desnudava a seus olhos o ermo sáfaro em que lhe ficara a alma, depois da perda desse amor, que era toda sua existência. Esse casamento póstumo de um amor extinto não era senão esplêndido funeral, em face do qual Seixas devia sentir-se mesquinho e ridículo, como em face da essa o soberbo compenetra-se da miséria humana."

Acordo comercial ou amor?


Não há dúvidas que Senhora representou uma inovação no romance brasileiro ainda que carregado dos moldes europeus. Alencar ousa no tema ao tratar da monetização das relações humanas e no andamento do romance, contrariando a expectativa do leitor quando se espera uma sequência exata de acontecimentos. A convivência e o comportamento do casal Aurélia e Seixas nos brinda com suspense através de jogos de sedução, indiretas, pequenas disputas de ego e principalmente ORGULHO.

De moça tímida e pobre, Aurélia transforma-se em uma poderosa e rica mulher que compra o marido - uma personagem forte, mas sem representatividade no Brasil do século XIX. A ousadia de Aurélia me fez vibrar: Puxa! Olha que atitude "feminista e revolucionária", uma mulher escolhendo seu marido e ainda pagando por ele! (Se bem que as famílias das mulheres pagavam os noivos com dotes desde sempre).

Só que no decorrer do romance Aurélia me decepcionou com suas oscilações de comportamento e principalmente algumas atitudes "infantis" que não colaboravam nem com sua vingança e nem com seu amor pelo marido. 

Por outro lado, Seixas me surpreendeu com seu desejo de manter sua honra, cumprindo com o contrato/casamento e com isso também juntando dinheiro para devolve-lo à Aurélia e assim pagando a dívida na qual estava preso. Apesar da personalidade mesquinha e narcisista de Seixas, após se ver comprado e humilhado, quis manter um resquício de dignidade perante si mesmo e a alta sociedade carioca.

O desfecho é incrivelmente decepcionante: mal resolvido e contraditório. Mas ainda sim, recomendo a leitura.

É certo que Senhora é um romance com detalhes que passam despercebidos, mas com uma análise mais apurada irá surpreender e torná-lo ainda mais admirável na nossa literatura. Vale a pena ler as criticas de professores como Antonio Dimas (que fez a introdução desta edição), Roberto Schwarz e Antonio Cândido.

Trecho escolhido:
"Quero que o mundo me julgue feliz. O orgulho de ser invejada, talvez me console da humilhação de nunca ter sido amada. Ao menos gozarei de um aparato de ventura. No fim das contas, que é tudo neste mundo senão uma ilusão, para não dizer uma mentira?"

Comentários

  1. Fabio, concordo com você quando diz que Aurélia é inverossímil mostrando tanta maturidade com 18 anos e ainda já totalmente incluída nos costumes da alta sociedade. Mas como comentei no texto, ela vai demonstrando sua "instabilidade e imaturidade" ao longo da história. Engraçado, que a maioria das pessoas criticam as descrições de Alencar, mas isso não me incomodou não. Outra curiosidade é que ele comentou um livro dele mesmo - Diva numa critica (ao meu ver) ao quanto se consumia arte e literatura estrangeira naquela época. O Brasil já se auto-desvalorizava.

    Patrícia.

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