Madrugada Suja – Miguel Sousa Tavares

“Nada é a feijões”
Esta frase de um dos personagens de Miguel Sousa Tavares, em seu ótimo livro “Madrugada Suja”, representa o mote da trama. Tudo tem seu preço. A cada decisão que tomamos, ou deixamos de tomar, nosso caleidoscópio dá uma volta, muda o cenário, fecha janelas e portas para abri-las em novos e surpreendentes lugares.


Na história com excelente ritmo e cheia de acontecimentos, vamos nos afeiçoando às palavras levemente diferentes do idioma usado em Portugal.  Você se pega na leitura com sua “voz mental” falando com sotaque português. Ao menos foi assim comigo. Achava tão mais bacana que ligeiras diferenças permanecessem, ao invés da infeliz revisão ortográfica em que nos jogamos!

Herdamos dos portugueses algumas características boas e outras más. Desconfio que é dos portugueses a receptividade ao estrangeiro, dado ser um país que se atirou ao mar e viajou e colonizou o mundo, miscigenou nele, ao invés dos imigrantes de tantas outras culturas, que formam guetos. Também é deles algo de nossa lascívia, como em vários trechos picantes – denotando claramente um livro escrito por um autor masculino.

“Se digo que não sei bem se ela sabia ou não o que se passava do lado de fora da casa de banho é porque, muitas vezes, recordando e constituindo o que eram essas incríveis sessões de devassa crepuscular, me parece quase impossível que tudo aquilo fosse inocente e desprevenido, da parte dela: a maneira como se estirava toda, arqueando o peito e as pernas, a maneira como rebolava de repente virando o traseiro em direção à janela, como se sentava de lado e depois de frente, expondo a todos os ângulos aquele inacreditável peito, a crueldade lenta com que passava por todo o corpo o sabão azul e branco, em cada curva, em cada reentrância, em cada músculo, esfregando como se fosse noite de núpcias, tudo isso ou era demasiado estudado ou era mesmo um dom. (...) Eu quis morrer assim várias vezes.”

As semelhanças também passam pela emotividade e apego com a família, e infelizmente, à corrupção e uso do governo e das promessas aos pobres como forma de enriquecimento ilícito e toda a sorte de corrupção. Tavares é também comentarista político, e faz várias inserções de suas opiniões sobre a união europeia e a gestão portuguesa, aproveitando o pano de fundo para o livro.

“Todos estavam endividados, mas felizes: o Estado, as autarquias, os cidadãos. Todos viviam em casa própria, mas que de facto, pertencia ao banco que lhes emprestara dinheiro a trinta anos e também emprestara para as férias no Brasil, Cuba, República Dominicana, mais o carro e os brinquedos electrónicos dos filhos”

Mas mais do que a trama política, mostrará para nós uma verdade universalmente piegas, mas verdadeira: o ser humano só quer ser amado. Das histórias de superação de uma das personagens, ao esforço dos que se levantam contra a mentira e a corrupção – passando por segredos íntimos, tudo isso está apenas emoldurando aquilo que nos faz gostar do livro. É a busca por vida em cada um dos personagens, uns indo longe de casa, outros nela ficando. A rotina em uma aldeia campestre, a vida de gente da cidade, toda entrelaçada na eterna busca humana por felicidade. A angústia da finitude, representada no saudosismo das lembranças e locais de infância - que passam a não ser visitados -  tão doloroso é o sentimento de perda que temos ao olhar as rugas no espelho.

O pano da história, das ideologias a que se aferram tantas certezas, talvez represente os limites do rio - seu curso por acidentes diversos. Mas jogado neles estamos todos, seres humanos, trombando uns nos outros, nos prejudicando e nos amando, e tentando no processo manter a cabeça para fora d´água. Enganados por alguma sensação de controle, vamos ao fluxo de uma enorme corrente, ora boiando, ora nos agarrando a algum galho ou pessoa, mas com limitada capacidade para guiar nossos destinos.

“Foi avo e mãe, mulher duas vezes, deitou-me quando adormecia de noite em frente ao lume, acordou-me quando dormia, de manhã, sem outro aconchego. Sobrevivi, literalmente, graças a ela. Mais tarde – e só mais tarde, como era hábito, passou-me também aos cuidados e atenções do meu avô, mas quando eu já tinha espigado, já mostrara que tinha vindo para viver, e já podia ir para o campo, para os animais ou para a barbearia, para o mundo dos homens, onde não havia colo nem festas na cabeça, mas silêncios e gestos mudos, uma dureza, uma secura de sentimentos, que era a maneira de os homens gostarem uns dos outros sem o dizerem.”

Aldeia Portuguesa
“Ficou a olhar, distraído, para um jogo de futebol entre miúdos, que se jogava na praia: na já quase escuridão que cobria a praia, o guarda-redes foi batido com um remate de longe e os miúdos de outra equipe saudaram o golo gritando e abraçando-se. “ A vida é feita de pequenas vitórias”, pensou, “são elas que antecipam e compensam as grandes derrotas.”

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