O segredo de Brokeback Mountain


Um amor proibido, completamente fora dos padrões 'normais' de uma sociedade americana e moralista da década de 60. Ennis del Mar e Jack Twist são dois cowboys que se conhecem durante a estada nas montanhas Brokeback, em que tinham como função pastorar ovelhas. De repente, em meio ao frio da noite, umas doses de bebida quente e a divisão de uma cabana, eles se envolvem sexualmente. O que a princípio parecia ser apenas uma união sexual movida pelo frio lá fora, na verdade era o começo de um amor impossível de se concretizar, devido ao preconceito da sociedade, entre outros fatores.

O segredo de Brokeback Mountain é um conto de apenas 67 páginas, que carrega uma história profunda e dolorida, em que duas pessoas se amam de forma pura e lírica, mas que por várias razões precisam se encontrar de 4 em 4 anos [ao longo de 20 anos], onde se refugiam no lugar em que se conheceram, longe de suas esposas, filhos e problemas... 

"Só consigo ver a gente se encontrando de vez em quando num fim de mundo...
- Quando é de vez em quando? - perguntou Jack. - De vez em quando de quatro em quatro anos?" 

A primeira das N' vezes que li esse livro, fiquei com a sensação de ter levado um soco no estômago. Me perguntei como Annie Proulx conseguiu com poucas linhas fazer uma história tão linda assim... O livro me dá tristeza, um misto de vazio infinito e solidão plena... Muitos podem pensar que se trata de uma relação bruta, tal a natureza dos personagens, mas ela se mostra justamente o oposto disso... é suave, terna, apaixonante, intensa, os dois amantes se entregam de forma absoluta aos seus sentimentos reprimidos... A montanha Brokeback é um refúgio, um ninho de amor para duas almas perdidas e apaixonadas...

Quando se conheceram em 1963, Ennis estava noivo. Ambos eram jovens e buscavam empregos, pois Ennis estava juntando dinheiro para o seu casamento. Jack Twist já havia trabalhado na montanha um ano antes mas era a primeira vez de Ennis trabalhando naquele local. O primeiro contato de ambos se deu num escritório, um simples aperto de mãos. Saindo daí, eles passaram a véspera da ida à montanha num bar, bebendo e contando histórias sobre si mesmos. Eles deveriam trocar de turno em pontos determinados na montanha, onde as ovelhas pastavam mas acabaram no mesmo local, devido ao clima inóspito e solitário... A partir das conversas e da convivência na montanha, algo foi crescendo dentro deles [sem trocadilhos maldosos, por favor...]... 

"Eles respeitavam a opinião um do outro, felizes de ter um companheiro onde não esperavam encontrar nenhum." 

Não sei se a magia do lugar ou outro fator levou os dois homens a se envolverem, mas com o passar dos dias, a convivência em Brokeback foi dando mais espaço a intimidades, e quando eles se viram próximos demais dividindo uma barraca, a explosão de sentimentos se formou. O ato sexual parecia mecânico, puramente instintivo, mas eles nunca falavam a respeito, e a coisa se repetiu. Mas apesar de tudo, Ennis se mostrava relutante ao que faziam. Ele diz: "Não sou bicha" e Jack respondeu: "Nem eu." Ennis tinha a pinta de machão, e tudo o que ele aprendeu desde pequeno, que homens não deitam com homens, e toda a violência de que ele foi testemunha quando era pequeno, no local onde morava, martelava em sua cabeça. E seu conflito interno era visível, quase palpável... 


Para Jack, as coisas eram mais simples. Se preciso fosse, ele assumiria. Ele sonhava com o dia em que Ennis iria desistir da vida que montou ao lado da esposa e filhos, para viver com ele. Mas Ennis tinha várias razões que justificavam seu medo. Ele achava que as pessoas poderiam ser muito más com Jack, e por isso ele nunca revelava nada... Viviam de aparências... Ao longo dos anos, com seus encontros bissextos, Ennis nunca assumiu sua relação com Jack, embora sua esposa Alma tenha sentindo que havia algo a mais com a amizade dos dois, embora o próprio Ennis negasse qualquer 'acusação'.

"Uma coisa nunca mudava: o brilho de suas cópulas bissextas era obscurecido pela sensação de que o tempo voava, nunca era suficiente, nunca bastava." 

A adaptação para o cinema é igualmente bela. Dirigido por Ang Lee, o filme é praticamente a leitura visual do conto. Não vi detalhes diferentes ao ler e depois ver o filme, é como se as cenas fossem passando pela cabeça do espectador, da mesma forma quando se faz a leitura da obra... As interpretações de Heath Ledger e Jake Gyllenhaal são emocionantes. Eles dão vida aos personagens do livro de uma forma única... Sou apaixonada tanto pela obra cinematográfica quanto pelo livro...


"Mais tarde, aquele abraço sonolento consolidou-se em sua memória como o único momento de felicidade natural e encantada em suas vidas separadas e difíceis. Nada estragava aquilo." 

O medo que Ennis sentia de assumir os seus sentimentos me fez pensar numa cena belíssima da história, em que ambos estão abraçados, Jack de costas para Ennis. Quando ele envolve Jack em seus braços, é como se ele não estivesse agarrando outro homem. O objeto de seu amor tem seu 'gênero' anulado, pois os falos não se unem, não se tocam. Enquanto Jack estiver de costas para Ennis, ele não é 'a mesma coisa que Ennis'. Ele reprime sua homossexualidade anulando o contato com a genitália de seu companheiro. Ao menos pra mim, foi isso o que o abraço deles simbolizou... É um misto de emoções conflitantes que Ennis sente e tenta entender. Não é fácil para ele. 

"Você não tem idéia de como fica ruim. Eu não sou você. Não consigo viver com algumas fodas em grandes altitudes uma ou duas vezes por ano. Você é demais para mim, Ennis, seu filho de uma puta. Quem me dera saber como lhe deixar. Como vastas nuvens de vapor de fontes termais no inverno, os anos de coisas não ditas e agora indizíveis - confissões, declarações, vergonhas, culpas, medos -  se levantaram em volta deles." 

Com um final chocante e ao mesmo tempo digno de se pensar 'Como é possível?' [sim, a incredulidade é justificada], nos sentimos tão desolados quanto os dois cowboys em sua montanha Brokeback, a carga de emoção e tristeza é arrebatadora. Não vou me prolongar falando a respeito disso pois corro o risco de soltar spoiler. Para quem viu o filme, não perca tempo e procure conhecer também a obra, embora já saiba do desfecho. 


"as mangas cuidadosamente vestidas nas mangas da de Jack Era a sua camisa xadrez, perdida, achava ele, muito tempo atrás em alguma lavanderia, o bolso rasgado, faltando botões, roubada por Jack e escondida ali dentro da camisa dele, o par igual a duas peles, uma dentro da outra, duas em uma. Ele colou o rosto no tecido e inspirou devagar pela boca e pelo nariz, esperando sentir algum leve vestígio do cheiro de Jack, ranço salgado e doce de cigarro e sálvia da montanha, mas não havia propriamente cheiro, só a lembrança de um, a força imaginada da montanha Brokeback da qual nada restava senão o que tinha nas mãos." 

Em suma, é uma obra tocante, pungente, arrebatadora, decerto uma das histórias de amor mais sofridas e lindas que já tive o prazer de ler... E sim, Jack e Ennis são um dos meus casais preferidos na literatura. Até mais que Romeu e Julieta... 



Comentários

  1. Val, ADOREI essa resenha. Eu já tinha vontade de ler o livro e agora isso aumentou. Uma das suas melhroes resenhas viu? ;)

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