As senhoritas de Nova York, de Daniel Piza

Há alguns meses, li em uma revista de fantasia, FC e horror uma declaração interessante do escritor e quadrinista Neil Gaiman, em que ele diz que "voltar a ler um livro favorito é uma das coisas mais infelizes e absurdas que podemos fazer". Neste caso específico, eu revisito de forma absurdamente instigante não apenas o livro, mas também o seu autor.


Daniel Piza é o jornalista que mais admiro e um dos escritores que mais me enche de prazer e felicidade. Ler as suas inúmeras produções - ensaios, entrevistas, matérias, livros e críticas - exerce tal enlevo em meu espírito que não consigo prestar atenção a mais nada ao redor. Nos momentos de leitura, todos os meus esforços de concentração, inspiração e criatividade acompanham as palavras de Daniel que, como diria o jornalista americano H.L Mencken, me permitem "sentir o vento do mundo no rosto". 

A propósito, meu primeiro contato com essa expressão foi em novembro do ano passado, em uma manhã nublada de sábado, ao som da voz de Elvis Costello, sentindo o perfume do odorizador de ar espalhado pela minha mãe por toda a casa. Naquela época, eu ainda estava com o coração balançado por dúvidas sobre rumos profissionais, martirizando meu cérebro com perguntas nas quais eu já sabia a resposta. Também nessa manhã, eu estava lendo "As senhoritas de Nova York: descoberta de Pablo Picasso" (editora FTD, ilustrações de César Landucci, 1996, São Paulo, pág. 96), livro de estreia de Daniel Piza.

A obra traz a troca de correspondência virtual entre os amigos Fernando e Gustavo, quando o primeiro vai passar uma semana em Nova York com a família. Impressionado com a organização, fluidez e avanço cosmopolita da cidade, Fernando remete suas impressões ao amigo. Logo no começo, percebemos a diferença de personalidade entre os dois, mas nada a ponto de abalar a amizade e o diálogo frutífero que surge dos argumentos, dúvidas e afirmações levantados por Fernando e Gustavo.

Aliando o sensorial ao intelectual, Fernando se permite equilibrar as descobertas que encontra pela frente, sem deixar que o 'desencanto tome conta'. Apaixonado por Adriana, o jovem une o mundo de percepções que vai se descortinando à sua frente durante a viagem ao sentimento que nutre pela colega de escola. Gustavo é mais cético, racional e eremita, e está sempre disposto a não se perder em abstrações. Por ter um relacionamento complicado com o pai, o rapaz amarga esse tipo de contato e busca na leitura de "Crime e Castigo", de Dostoiévski, as respostas para as angústias diárias que tomam conta da sua alma.

Já em Nova York, ao visitar o MoMA (The Museum of Modern Art), Fernando esbarra na tela 'As senhoritas de Avignon' (Les demoiselles d' Avignon), de Pablo Picasso, e um lampejo de consciência e iluminação transformam a visita em um insight. Fernando cria uma nova obsessão e passa a pesquisar e estudar tudo sobre o quadro. Dentre as curiosidades registradas nas cartas que envia a Gustavo, Fernando argumenta detalhes da construção da tela, como os setecentos desenhos preparatórios feitos por Picasso antes de começar a projetar a pintura; fala também de detalhes técnicos, como os tipos de planos e o uso das cores, assim como a escolha das posições, formas e localização de cada mulher na tela. Em poucas páginas, temos uma verdadeira aula de "arte como questão" e como processo de consciência.

As senhoritas de Avignon, tela de Pablo Picasso

A arca do tesouro desenhada por Daniel Piza ainda fica maior quando Gustavo emerge discussões sobre a obra de Dostoiévski. Para ele, o conflito de consciência do personagem Raskolnikov e os questionamentos que surgem a partir desse torvelinho moral, emocional e intelectual, é parte integrante do que enfrentamos no nosso dia a dia. Gustavo começa a apontar o dedo para normas e regras sociais, criticando-as. O "embate" intelectual entre os dois amigos, onde um defende a arte visual como propulsora de mudança, e o outro argumenta a favor da força inegável da literatura na metamorfose de vida do homem, é acompanhado de perto pelo leitor que, de acordo com suas próprias inclinações, toma partido de um dos lados.

A riqueza do debate, trazendo ideias novas e argumentos, além da aposta em um novo formato para a clássica correspondência epistolar, torna o livro do jornalista um ótimo estímulo para ampliar a consciência, onde o prazer também é posto em questão. Conhecido por seus aforismos e reflexões críticas, Piza começou a mostrar a que veio logo na obra de estreia, com frases como:

"Eu prefiro o novo, e é por isso  (faz parte da vida bem vivida) que minhas expectativas se frustram ou se superam". (pág. 30)

"Esforço e prazer não são coisas opostas!" (pág.72)


Por trás de uma aparente proposta juvenil, esconde-se mais uma - de muitas - pérolas deixadas por Daniel, que precisou se despedir da vida bem mais cedo do que deveria. Deixou imensas saudades, mas continua fazendo pessoas terem o que dividir e descobrir. E toda vez que um leitor, assim como eu, regressa às produções de Piza, arrisca-se em universos desconhecidos que nunca terminam. Porque assim foi Daniel: um homem que não coube no seu tempo e que arriscou a segurança das crenças estabelecidas em troca de uma vida com independência. Como diria o poeta E.E Cummings: "É preciso coragem para crescer e se tornar quem você verdadeiramente é". Daniel Piza teve essa coragem.

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