Sentando no colo de Tchekhov

Anton Tchekhov foi um bom amigo quando precisei. Esperando sentada para que a fila do consultório médico andasse, os oito contos selecionados para compor o rapidinho "A corista & outras histórias", lançado pela editora L&PM na Coleção 64 Páginas, tiraram muito do meu tédio naquele momento. Não tem nada que pague uma âncora jogada bem no meio da inércia profunda dos atendimentos na área de saúde, cujo único passaporte é uma senha infinita. Arrisco o palpite de que todo mundo conhece esse sentimento - ou pelo menos experimentou algo parecido uma vez na vida.

Tchekhov

A Enimara já escreveu sobre as delícias de ler o "Tchek", médico e contista russo que nasceu em Taganrog, em 1860. O autor russo tinha o brilhantismo de observar a vida cotidiana de homens e mulheres banais que, exatamente por esse motivo, tornam tudo mais grandioso. As oito histórias são tão boas que se torna penoso apontar preferidos, mas vou fazer um enorme esforço e deter minhas atenções em quatro narrativas.

"A palerma" chamou bastante minha atenção por tratar de relações de poder que envolvem classe social e sistema empregador X empregado. O texto traz a tentativa de um senhorio em passar a perna na governanta da casa e preceptora de seus filhos, pagando bem abaixo do combinado. O interessante na narrativa é perceber como somos fragilizados como seres humanos e que podemos nos submeter aos caprichos mais descabidos simplesmente porque nos colocamos em uma posição de desprivilegiados, aceitando todos os desmandos dos sapatos que nos esmagam, camuflando a humilhação com a ideia de "eu te acolho, você não encontra coisa melhor". Até hoje isso acontece, principalmente na iniciativa privada, com controle direto ou tácito, feito através daquelas mensagens ridículas de "você está fazendo um bom trabalho, MAS...", começando a apontar soluções para você adentrar na dita "cultura organizacional".

"Nós realmente amamos seu trabalho, mas."

O livro segue com o interessantíssimo "O gordo e o magro", que traz um perfil dos bajuladores de ontem, hoje e amanhã. O que um bom cargo, posição e status social podem fazer com as personalidades? Como diria Tchekhov:

"(...) para que esse servilismo e essa bajulação?" (pág. 9)

A história traz o reencontro acidental de dois amigos de infância com posições e vidas muito diferentes. Sem entregar os pontos, eu sugiro que você leia o artigo "Bajular com categoria", do escritor maranhense Cláudio Rodrigues, para entender um pouquinho mais do "feeling" deste conto.  

Igualmente formidável é o conto "A dama do cachorrinho", com observações que beiram à máxima dos 'costumes e comportamento social'. Na narrativa, um casal que se conhece no ambiente litorâneo de Ialta começa um relacionamento amoroso. Nada de mal nisso, mas existe a simples observação de que ambos são casados. A partir desse ponto, eles iniciam uma vida dupla, ostentando o socialmente aceito em contraponto aos segredos e mistérios dos 'pecadilhos'. Gosto bastante da crítica que Anton Tchekhov faz nesse conto ao mostrar que somos obrigados a viver uma vida para os outros e uma vida nossa.

"Cada existência pessoal sustenta-se no segredo, e talvez seja por isso que o homem educado exige tão nervosamente respeito à sua privacidade". (pág. 36).

Essa disparidade entre uma vida convencional e um mar oculto de segredos (que parece ser a verdadeira vida) pode ser percebida também em "A noiva", enredo protagonizado pela jovem Nádia. Aos 23 anos, a pacata russa vê seus sonhos contestados pelas indagações ferinas de um agregado da família, Sacha, um sujeito cheio de ideais e projetos, do tipo "revolucionário" e que sofre de tuberculose. Unindo os questionamentos que já trazia dentro de si com as observações nada suaves de Sacha, a pobre Nádia se vê entre a tormenta de seguir com seus projetos de casamento ou mudar de vida, estudar e abrir as asas.

Para quem ainda não teve a oportunidade de sentar no colo de Tchekhov, esse conjunto de histórias são uma ótima oportunidade para começar.

Comentários

  1. Delícia de matéria, Mara.
    Viva Tchekhov!

    Claire.

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    1. Nossa, Claire! Muito obrigada! :)

      Viva a um dos maiores contistas russos! :)

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  2. Oi, Mara!
    Nunca li nada do Tchekhov, mas conheço a história de "A dama do cachorrinho" porque me contaram ela toda, mas mesmo sabendo a vontade de ler e conhecer mesmo ainda é forte, rs.
    Vou colocar na lista de futuras aquisições essa edição com preço camarada da L&PM.
    As histórias que mais me chamaram atenção foram: "A Noiva" e "A palerma" :)
    Espero poder ler em breve!

    Beigos,
    Maura - Blog da /mauraparvatis.

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    1. Oi, Maura!

      Quase minha xará, né?! rs. Bacana demais que você curtiu os contos. (: Eu conhecia o Tchekhov por influência do Gogol. Hahaha! Uma boa história!

      Super beijo e valeu,

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  3. Cara, eu nunca li um Russo clássico e faz é vergonha...mas eu comecei a ler Tchekhov um tempo aí, mas o livro era da biblioteca então acabei devolvendo sem terminar ;/ o livro parecia ser ótimo, mas acho que vou começar os russos lendo Dostoiévski mas logo em seguida vou seguir sua dica e sentar no colo do "Tchek" hahahhaha

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    1. HAHAHAHAHA!

      Pois sente e bem sentada, Tam! Hahahaha! A primeira sentada a gente nunca esquece. <3

      Beijo,

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  4. Eu sou um fã incondicional dos contos desde que comecei a ler Machado de Assis, e assim segui. Poe, Rubem Fonseca, Doyle entre outros. Mas acredita que eu não conhecia até este momento Tchekhov? Tenho que reparar esse erro imediatamente. xD

    A criatividade do título foi bem bacana. Se não interpretei mal, remonta aquelas tardes gostosas da infância em que ouvíamos histórias da mãe, avó, avô etc. Uma verdadeira nostalgia.

    Achei sua análise do "A palerma" muito boa. Conseguiu passar uma ideia da real proposta do conto, que vai muito além do que a sinopses de enredo mostram. O mesmo vale para "A dama do cachorrinho", mas no "A noiva" achei que faltou essa análise mais crítica.

    Senti falta da citação de uns trechos maiores do livro. Em algumas postagens (creio que aqui do blog mesmo), colocou-se ao final uma parte de trechos preferidos. Aí tornou-se possível tirar umas conclusões próprias sobre o estilo do autor. Não creio que seja necessário trechos longos, mas duas ou três linhas seriam bem legais.

    Em suma, foi ótima sua análise. :)

    Pena que em minha cidade nunca tenha visto livros da L&PM para comprar. :(

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    1. Hey ho Jonathan!

      Valeu demais pelas observações! :) Elas são muito importantes para a gente continuar discutindo ideias.

      Puxa, eu também sou uma grande amante de contos! Já vi que temos muito em comum, porque curto bastante todos os autores que você citou. :)

      Obrigadão pelo comentário!

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  5. Olá Mara!
    Que bom que gostou do Tchekov ele é um dos meus preferidos também. Saudades de ler os russos... será que esse ano eu consigo? Cross fingers!
    beijos

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  6. Desde que li estou a procura de outro título de Tchekhov, mas nunca encontrei. Hoje por exemplo, estive num sebo, trouxe 8 livros pra casa mas não encontrei nenhum dele.
    Como a Pat falou, tbem estou querendo ler mais russos, separei um Dostô para ler este ano, quero só ver se consigo. rs

    Baita texto gostoso de ler, Marinha.

    Beijos.

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