Gógol e o retrato do realismo fantástico

"Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação?
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução
Pra que esse nosso egoísmo
Não destrua nosso coração". - Será (Legião Urbana)


Nikolai Vassílievitch Gógol era um cara enigmático, de personalidade complexa e portador de uma grande dificuldade em construir relacionamentos afetivos e amorosos. Morreu aos 43 anos, tomado por um processo autodestrutivo que acabou por levá-lo à inanição. Apesar do fim mórbido, o legado do contista, romancista e dramaturgo russo é uma pérola fantástica em meio a tantos nomes proeminentes, como Dostoiévski, Tchékhov, Maiakóvski, Tolstói e Púchkin


Caminhando na vanguarda, Gógol apostou no realismo fantástico para criar suas histórias, onde sátira, ironia, tragédia e comédia andam lado a lado. Dono de um senso agudo de observação, o escritor apontava o dedo em cima das mesquinharias da sociedade russa da época, onde personagens grotescos carregam a ânsia por estar na metrópole, fazer parte da máquina que gira a mercadoria e a expõe em vitrines para que mais "homens na multidão" possam adquiri-la e se sentir parte do sistema. Muitos críticos literários apontam o "grotesco" e as "figuras-marionetes" como forma de definir os personagens criados por Gógol, que seriam, na verdade, uma caricatura do homem moderno. Devido às dificuldades encontradas no decorrer da sua vida afetiva, Nikolai Gógol não nutria grandes amores. Altamente influenciado pela mãe, o escritor russo vivia imerso em um doloroso dualismo religioso, sem que tenha encontrado um equilíbrio interior; desejo e moral brigavam entre si, deixando espaço para uma eterna indecisão sobre amar a Deus ou jogar piadas no demônio. Esse lado místico de Gógol, que por ser mal administrado, acabou o levando à loucura, pode ser visto no conto "O Retrato" (editora L&PM, 2012, pág.64), obra que já recebeu os comentários da Eni aqui no Dose Literária.

A narrativa traz a dualidade vivida pelo pintor iniciante Tchartkov que, em uma de suas andanças pelas ruas do mercado da cidade, acaba encontrando um quadro cujo retratado possui um par de olhos estranhamente expressivo. Decide levá-lo para o seu apartamento e, durante a madrugada, o artista tem uma visão fantástica da figura registrada na tela, acordando inúmeras vezes do que parece ser um pesadelo sem fim. Como Tchartkov vivia em uma situação financeira desesperadora, a imagem do quadro parece providencial, concedendo-lhe a oportunidade de mudar de vida. Tudo começa nesse momento, onde o jovem pintor esquece todas as suas metas artísticas e sucumbe à ostentação, ao 'faraonismo', à cobiça. 

"Tudo aquilo que ele havia contemplado até então com olhos de inveja, tudo aquilo que ele havia admirado de longe, com água na boca, estava agora a seu alcance". (Pág. 22)

Mas, como todos nós sabemos (ou pelo menos temos uma vaga ideia), nem tudo são flores "neste vale de lágrimas" chamado mundo, e o que "vem fácil, vai fácil". O preço que Tchartkov pagou por sua ganância foi alto: a perca total do talento, do dom que o fazia promessa de sucesso. O retrato penetrou no coração do jovem pintor e o encheu de inveja, de materialismo, de fetiches mundanos. No entanto, em determinado tempo, surge alguém que fez escolhas diferentes de Tchartkov, se transformando em um artista eterno. Esse evento faz o invejoso e mesquinho ex-artista, que virou um mero burocrata, afundar na loucura.

"A glória não pode trazer alegria a quem a roubou: ela só faz palpitar os espíritos dignos dela". (Pág. 35)

Na segunda parte do conto, depois da queda de Tchartkov, o leitor é conduzido a um leilão de peças raras, lotado de aristocratas ansiosos por completar suas coleções. Não precisa de muito esforço de imaginação para perceber que o tal retrato diabólico estará lá como uma das aquisições mais disputadas. Até que um sujeito interrompe os lances e começa a contar a história surreal da origem do quadro. Para resumir, quem adquiria a tela perdia todo o sentimento humano, "que morre prematuramente em seu coração". 

O interessante no conto parte da observação que Gógol faz entre "obter sucesso rápido" e "ter paciência para aperfeiçoar sua arte". Essa relação tem a ver com a capacidade de autosacrifício, doação, entrega e sonhos que uma pessoa pode ter. O lado místico fica por conta do entendimento de que a ambição desmedida e a inveja fazem parte do demônio, que cobra um preço de agiota para quem deseja utilizar de seus serviços.

"Haviam desdenhado demais o caminho montanhoso dos esforços progressivos". (Pág.38)

Dentro da esfera surrealista, "O Retrato" mostra os enigmas da irracionalidade impetuosa partindo exatamente de onde menos se espera: do racional, do real.

Selo postal com 'motivo' de Gógol 

Plus:

A Revista Cult publicou um ensaio muito interessante sobre a arte de Gógol. Leia aqui.

Um documentário soviético - com imagens de 1939 - relembra algumas memórias de Nikolai Gógol. Assista.

Na série especial "In memoriam: Escritores e seus túmulos", a Eni mostra onde está enterrado Gógol. Veja clicando aqui.

Comentários

  1. De primeira linha, Mara!
    A novela pode funcionar também como uma reflexão metafórica, simbólica, da criação artística e dos perigos que o artista enfrenta - criar, dedicar-se, impacientar-se, buscar o caminho mais curto ("pular etpas", como costumo dizer)...
    Claire.

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    1. Obrigada, Claire! :o)

      Tem muita coisa 'escondida' dentro dos mais diferentes textos, né? Cada autor está ali, embaixo das cortinas, esperando (ou não) ser 'descoberto' por outro alguém que o reconheça, que o sinta.

      Um abraço,

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  2. Mara, com o teu talento você consegue não só falar com beleza do que já é belo, como capta muito da essência que as vezes no passa despercebido numa leitura, ou, por ser tão extraordinário e reflexível, a história nos rouba a fala diante de nossa própria perplexidade. Você falou exatamente tudo o que quis dizer sobre Gogol e o seu Retrato. Nem chega a ser uma estória extraordinária, mas esses contos parecem ter sobre a gente o mesmo efeito que a pintura teve sobre quem o possuiu, eu fiquei encantada mesmo com a escrita de Gogól, quero viver mil anos para poder ler todos esses russos ainda! Quanta riqueza.
    Amei demais, e com esse plus, a vontade é de sair lendo e pesquisando ainda mais e só parar diante de uma edição de um Almas Mortas ou Diário de Um Louco (fica a dica para quem quiser me presentar, rsrsrs).
    Maravilhoso, amiga!

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