Noite na taverna e os 'dentes amarelos da morte'


"He who desires, suffers; he who lives, desires; thus, life is pain..." 
(A. Shoppenhauer - 1788 - 1860)


Ophelia (1852) - by John Everett Millais
"Nas sombras do amor e sofrimento"

Manuel Antônio Álvares de Azevedo foi um grande expoente da cultura ultra-romântica no Brasil, sendo discípulo obstinado de Byron, Musset, Rousseau, Shakespeare, Shelley, Goethe, entre outros. 

Dono de um sentimentalismo mórbido, depressivo, egocêntrico e muitas vezes masoquista, Álvares de Azevedo concentrou suas obras na busca constante pelo escapismo, personificado na visão da morte e "sua taça de veneno, que sorri silenciosa e horrenda com seus dentes amarelos".

Álvares de Azevedo sem o bigodinho
O autor vivenciou momentos de profunda dor, procurando hiperbolizar sua angústia na autodestruição. Paisagens tumulares ilustraram seus ideais, onde o código da realidade mostrava-se excessivo demais para ele. Foi membro da "Sociedade Epicuréia", uma ode em que as reuniões direcionadas pelo álcool, ópio e haxixe identificavam os jovens filhos do mal-du-siècle (mal do século). 

Sua morte precoce - aos 21 anos - limitou a continuação de um brilhante legado, porém, Álvares deixou uma herança de poesias, contos e prosas. Noite na Taverna (1878) é a narrativa que apresento aqui, onde são examinados os aspectos que julgo mais representativos. Antes de tudo, essa é uma homenagem pessoal a esse grande mestre da literatura brasileira que é, indiscutivelmente, minha maior influência ultra-romântica.

"Como a inocência morre"

Noite na Taverna não é apenas um livro de contos funestos, onde os protagonistas relatam histórias que misturam incesto, necrofilia, antropofagia, infanticídio, violência e morte. A obra consiste também na forma cristalizada que seu autor utiliza para exteriorizar desejos ocultos que lhe dominam a alma.

Antes de tudo, é preciso compreender que essa obra é marcada por forte caráter surrealista, em que fatos oníricos assumem formas reais suplantando a noção de realidade. É um retorno camuflado às visitas de Dante Alighieri ao Inferno em "A Divina Comédia", onde os pecadores são condenados à penas terríveis. Os personagens de Azevedo são dominados por momentos de intensa insanidade, delimitados pela presença dos delírios de febre e embriaguez. O tempo torna-se confuso, os personagens são movidos por sentimentos inomináveis oriundos do 'fogo da insensatez'. Eles vêem, escutam, cheiram, provam e sentem o desencanto pela vida.

A evasão é outra marca dessa obra, onde o nome do lugar onde desenvolvem-se os fatos mostra-se completamente desconhecido. Outro detalhe a ser observado é a grande influência estrangeira, refletida nos nomes dos personagens: Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann.

Paradoxos acompanham toda a narrativa, deixando o amor puro e a luxúria lado a lado. Não existem valores sociais, cargas morais ou pensamentos religiosos, pois a realidade objetiva não é compatível com os anseios e atitudes dos protagonistas. Todos parecem viver perdidos na complexidade das emoções.

Noiva Cadáver: A mulher ideal para os discípulos de Byron

"She walks in beauty like the night"
(Lord Byron - 1788 - 1824)

Adentrando o universo do livro, encontramos Solfieri. O relato do jovem mostra como ele manteve relações sexuais com uma mulher que julgava morta (mas que, na verdade, sofria de catalepsia), revelando assim uma perversão chamada de necrofilia. Essa é a primeira cicatriz feita por Álvares de Azevedo nos tabus humanos, criando um verdadeiro lago negro em cada linha escrita.

Em minhas observações, notei que o desejo por uma criatura morta é apenas a retomada idealizada de mulheres lânguidas, pálidas, etéreas, flutuantes. A busca pela imagem alva, imaculada e efêmera será a lei da complementação do amor pois, na mente do jovem autor, tais "anjos perfeitos" são capazes de tocar seu coração, então lacrimoso, e retomar as angústias dos autores da segunda geração romântica.

"Sangrando, chorando, sofrendo e odiando por amor"

Bertram viveu intensa paixão pela espanhola Ângela, que acaba assassinando marido e filho para ficar com ele. No decorrer da história ocorrem adultério e antropofagia, envolvendo o leitor em uma atmosfera macabra de atitudes desumanas, remetendo à rituais tribais primitivos ou algo ligado à seitas satânicas.

O autor procura enfatizar a insanidade humana, deixando claro que a linha entre a razão e a loucura é muito tênue. Álvares de Azevedo mostra também as necessidades instintivas do homem, superiores à sua própria consciência. A corrupção da racionalidade ocasionada pelos malogros da vida torna essa afirmação ainda mais evidente.

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Sedutora Luxúria

Mais à frente, o leitor se depara com Gennaro, personagem que se deixou envolver pela mulher (Nauza) e filha (Laura) do pintor Godofredo Walsh, provocando assim uma série de tragédias. A primeira delas é o infanticídio, seguido pela tentativa de homicídio e suicídio. Durante todo o enredo, percebi um maior erotismo, cenas sexuais expostas e consumadas pelo desejo do jovem de possuir a 'beleza da virgindade'. 

Talvez isso represente uma sexualidade reprimida em Álvares de Azevedo, revelando o jovem em ebulição existente dentro dele. Para dar maior significado à minha assertiva, enfatizo o poder da luxúria em corpos que ainda não experimentaram o poder sexual e a influência que essa descoberta pode ter exercido no autor.

Dita Von Teese

O aborto, tabu humano presente na narrativa, tem seu significado na desvalorização das leis religiosas, funcionando como forma de impacto.

"Complexas equações do amor e da verdade"

Rapto, adultério (de novo), suicídio e dor refletem a história de Claudius Hermann. O amor regenera caracteres, fazendo o protagonista recuperar (ou adquirir) dignidade. Posso apostar que esse seja o conto com toques mais "amorosos" (no sentido do termo como o conhecemos), onde o lirismo neoplatônico pulsa em cada acontecimento, revelando o lado delirante e ingênuo de Azevedo. Sonhos e devaneios, além de um trágico final, concretizam o excelente prosador noturno dentro da pouca idade de Álvares de Azevedo. "Embracing, kissing, loving, promising forever!"

"Formas nuas no peito resvalando..."
(Álvares de Azevedo - 1831 - 1852)

O desregrado Johann comete incesto com a irmã Giorgia e duela com o próprio irmão, levando ao fatricídio. Para mim, Johann é o personagem mais emblemático construído na obra, com descrença total de qualquer valor humano ou regra fundamental da sociedade. 

A questão do incesto revela um Álvares oculto, com grande devoção à mãe e à irmã e que, muito provavelmente, procurava nelas o amor e a pureza que tanto o fascinavam. O desfecho da narrativa é dramático e lembra tragédia românticas como Romeu e Julieta (Shakespeare) e, especialmente, Os sofrimentos do jovem Werther (Goethe).

Será que hoje, Álvares de Azevedo adotaria o visual do Brandon Lee em "O Corvo"?!

E namoraria uma gótica ao sol? (Créditos: google/fotolog: garota_estranha)

Álvares de Azevedo viveu plenamente o "Sturm und Drang" (Ímpeto e Violência), desmoronando a utopia do "carpe diem" e elevando sua inadaptação ao mundo.


Observações: Todo esse texto faz parte do meu trabalho para a disciplina de Literatura do colégio. Na época, eu contava com 17 anos e encerrava o semestre do antigo 3ª ano do ensino médio. O professor da matéria, Adriano Lobão, pediu que fizéssemos a leitura de um livro que gostássemos e que se enquadrasse dentro de uma das gerações da literatura brasileira. Optei por Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, obra que influenciou fortemente toda a minha adolescência. O material também foi escrito ao som das bandas Avec Tristesse e Draconian, outra forte dose de inspiração na minha escrita e nos meus pensamentos (isso você pode identificar no texto). Aos 17 anos, Álvares de Azevedo conseguiu semear em mim um pouco das crenças e sonhos que tenho hoje, aos 25. E neste ponto, posso perceber o quanto a literatura resiste dentro das nossas vidas - quando a queremos.

Capa do meu trabalho escolar (salvo para uma vida)

Onde mais você encontra o Álvares de Azevedo no Dose Literária:

Comentários

  1. Como sempre, mais uma obra maravilhosamente descrita pela Marinha! Me deu até vontade de reler!
    Beijos

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