Vocês tem caráter? Sim, mas não embalamos para presente, senhora!


As aventuras e desventuras da "mulher moderna, audaciosa, independente", narradas "com leveza, humor e emoção", como se fosse um diário ou o depoimento de uma melhor amiga, caracterizam a literatura conhecida como Chick-lit, ramo que já fincou bandeira em terra firme. A escritora Emily Giffin tem se tornado um dos maiores nomes do gênero com publicações que alcançam a marca dos cinco milhões, sendo comparada com o famoso best-seller Nicholas Sparks (de quem, confesso, nunca li nada). Basta uma rápida entrada em qualquer livraria para notar como os livros de Sparks - e de uns tempos para cá, os de Giffin - ocupam as prateleiras principais. Você pode reconhecê-los fácil pelos títulos (muitos deles adaptados) e que fazem jus a qualquer 'sessão da tarde'. 

Romance de mulherzinha ou não, ao contrário do autor de "Querido John", eu já tive uma experiência com a escritora de "Presentes da Vida" (Something Blue, editora Novo Conceito, pág. 384) quando li o livro"Questões do Coração", cujo foco era falar da infidelidade sem apontar culpados, já que todos tinham sua cota de contribuição no erro. Como é de se esperar em livros do gênero, a nova narrativa também retoma a temática da traição, adicionando um caldeirão inteiro de "especiarias humanas", como egoísmo, futilidade, inveja, amizade e laços rompidos. A história traz o ponto de vista de Darcy Rhone, uma relações-públicas que parece a cópia escarrada da Samantha Jones, personagem da série de estrondoso sucesso Sex and the City. Como Samantha, Darcy curte altos porres inconsequentes de diversão, busca por luxo, riqueza e status, acredita na beleza como arma suprema e usa seu poder de sedução para conseguir todos os homens que deseja (e ela deseja muitos). No meio desse estilo de vida badalado - que reflete muito bem a neurose de ostentação norte-americana quando o assunto é luxo, sexo e glamour -,  há uma amizade de infância entre Darcy e Rachel. Nada novo: a velha analogia à líder de torcida gostosona, popular e 'pega-todas' e sua amiga sem graça, sem beleza e muito inteligente. A trama tem ponto de partida quando a amiga superficial e badalada descobre que a advogada sem graça, que sustentava todos os seus porres, suas crises e sua cabeça vazia, está tendo um caso com seu noivo, o bonito, culto e bem sucedido Dex. Acha pouco? Se segura que lá vem mais clichê: Darcy, que traiu o noivo com o padrinho de casamento do mesmo, o quase ripongo Marcus, fica revoltadíssima com a suposta infidelidade máxima da amiga e desenvolve uma obsessão pelo ex-futuro marido e pela ex-melhor amiga. 

"Amigas, amigas. Homens à parte".
Darcy ainda tenta criar um relacionamento sério com o tal padrinho-traidor, que não quer saber de nada e tem um estilo de vida diferente do dela e, desiludida, segue para Londres, onde espera encontrar um outro príncipe encantado endinheirado para fugir dos problemas, já que, como recompensa das transas ardentes com Marcus, a desencanada relações públicas recebe uma gravidez. Darcy não vai para a terra da família real chata e escandalosa sem "lenço e sem documento"; ela tem um outro grande amigo de infância, Ethan, que a recebe, muito contrariado, e resolve abrigá-la. Em um lugar estranho, longe da família, das babações, dos amigos fúteis, coquetéis, festas e ainda tentando apagar a fixação no casamento falido e na vida de Rachel e Dex, que viram um casal sério, Darcy vai fazer seu próprio "Caminho de Santiago" em meio ao processo da nova vida em Londres. No tempo que leva toda a sua gravidez, as coisas começam a mudar. 

"Tá pensando o quê, hein, querida? Que pode levar o meu tigrão?"
"Presentes da Vida" vem contar a versão de Darcy, já que em "O Noivo da Minha Melhor Amiga" (Something Borrowed) a trama se desenrola em torno de Rachel e seu envolvimento com Dex, sendo adaptado para o cinema em 2011 com Kate Hudson e Ginnifer Goodwin no papel de Darcy e Rachel, respectivamente. Não assisti ao filme e nem li o livro, mas pelo que consegui sentir em "Presentes da Vida", o enredo vai pelo mesmo caminho sem novidades: amizade desfeita por traição, coração em pedaços, saga da mudança, reconciliação. Não me identifiquei com a Darcy, não senti a menor empatia por sua situação e, em muitas horas, respirei fundo para não ceder à tentação de fechar o livro e mandar um '"vá rodar seu caneco" para essa chata ridícula, que nasceu com a convicção de que tudo gira ao seu redor. O que aponto como interessante na escrita de Emily Giffin - e talvez seja uma das causas do seu sucesso - é a forma como a autora aproxima leitor e personagem, fazendo a mudança de voz (comportamento) refletir também no próprio processo mental de leitura. Explico: quando estava lendo as partes em que Darcy era uma filha da puta, artificial e ostentadora, tive impaciência e raiva, e vez ou outra soltava um longo suspiro acompanhado de "babaca". Já no momento de transformação da ex-relações públicas à atual grávida desempregada, consegui percorrer os olhos sem arroubos de raiva, sem ímpetos de suspirar pesado. Não senti empatia e nem me emocionei com a tal mudança dela, afinal, era o único caminho que ela acabou tendo que seguir, mas reconheço a habilidade da autora em mudar o tom da narrativa, caracterizando a própria mudança de comportamento.

"Não, nós não somos Katie Holmes e Tom Cruise, pessoal".
No geral, não acho que a chamada literatura Chick-lit abarque com exatidão os desafios da mulher moderna, bem resolvida e inteligente. Não. Pelos livros que já tive a oportunidade de ler ou folhear com mais atenção, é tudo sobre como "imaginamos ser a vida da mulher moderna", ou ainda como é a vida da mulher moderna norte-americana. É essa a realidade que encontramos nesses livros, esses são os problemas principais e seus únicos desafios consistem em falar de si mesmas e de seus relacionamentos. Continuo pontuando o "Questões do Coração" como o melhor dos livros de Giffin, tanto pela sensibilidade como por fugir (pelo menos um pouco), dessa existência "Sex and the city", irreal e vazia, apesar de arrancar boas risadas e algumas coincidências. 

Comentários

  1. Seus textos, sempre sempre MARAvilhosos! :)

    Eu bem evito esse gênero literário por um motivo: medo. Dois tipos de medo: de gostar e de não gostar.
    Se eu não gostar, tudo bem, vou continuar não lendo-os, mas o pior é se eu gostar desse tipo de leitura... é o tipo de livro que não encontro em sebo por menos de 20,00, quem vai se lascar é o meu bolso! rsrssrs

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